PANDEMIA E EDUCAÇÃO - MEU DEPOIMENTO | CRÔNICAS DE UMA PROFESSORA

    Eu escrevo crônicas, elas falam sobre o dia a dia, algumas ações, muitos sentimentos. Não são artigos científicos, não pretendem ser. Nessa crônica vou tentar externalizar um pouco do que tenho sentido e pensado nesse momento de pandemia e suspensão de aulas. 

    Fui aluna da rede pública em todos os 11 anos de escolaridade básica. Lembro de muitas greves, incluindo uma que durou por volta de 3 meses, nos idos anos de 1988. A falta das aulas sem dúvida foi um dos fatores que não me possibilitarem entrar na universidade pública. Eu nunca fui nerd na escola, sempre na média, e tinha urgência em entrar na faculdade, então, quando não passei na Fuvest em 1997, no ano seguinte, prestei vestibular na faculdade privada, na época uma das melhores e mais baratas do Grande ABC, a Fundação São André, ingressei na Faculdade de Ciências Sociais em 1998, me formei em 2001, e em 2002 já estava na sala de aula.


Sou professora da rede pública há quase 18 anos, concomitante, fiquei 10 anos numa grande rede particular. Foi na sala de aula que me forjei professora. No dia a dia com @s estudantes é que pude construir, destruir e reconstruir formas de ensinar e aprender. Acumulei ao longo desses anos algum repertório no processo de ensino e aprendizagem, sempre em permanente mudança, porque as gerações vão mudando muito rapidamente. Não fiz isso sozinha, óbvio, conheci educadoras maravilhosas, participei de cursos, palestras, oficinas, reuniões pedagógicas, formações continuadas, tive parceria com pessoas com quem aprendi muito, e só tenho gratidão, além de aprender com nossas meninas e meninos, sempre na tentativa e erro do dia a dia, nada fácil, da sala de aula. 

    Em 2019, de forma inédita, iniciamos o ano letivo em greve. Como professora de escola pública, compreendi na prática a necessidade das greves, como forma de luta pela valorização da categoria e por uma educação pública de qualidade.  Mas preciso dizer que greves sempre me angustiam, entre vários motivos porque são dias de luta e não de folga, e porque elas sempre me remetem aos meus tempos de escola, e ao fato do quanto a suspensão de aulas fazem diferença pra formação dos estudantes a longo prazo.


    Mas apesar da greve no início do ano letivo, 2019 foi uma ano especialmente otimista pra mim: nossa escola sob uma nova gestão, que trouxe uma perspectiva de mudanças, com compromisso e dedicação,  respeito, tornando o ambiente de trabalho menos insalubre, e mais favorável ao processo de ensino e aprendizagem. Além disso, foi um ano excelente para o projeto de educomunicação do qual faço parte há mais de 10 anos, com estudantes dedicados, e parceiros muito especiais. Terminei o ano cheia de expectativas.

    Mas como nos ensina o meme: a expectativa é sempre contrária a realidade. As notícias do Corona Vírus começam a chegar ainda nas férias. E como muita gente, pensei que a doença ia demorar algum tempo pra aterrissar por essas bandas, mas de fato "Hoje mundo é muito grande / Porque Terra é pequena" , como diz o trecho da canção "Parabolicaramá", de Gilberto Gil, e em Fevereiro, fomos surpreendidos com uma Terra cada vez menor, onde o vírus chegou de avião pra pular carnaval. Com o avanço da doença, em 23 de Março as aulas foram oficialmente suspensas no Estado de São Paulo.

    Daí pra frente entramos numa espécie de "cada um por si", onde estados e municípios agem por conta, para tentar impedir o avanço do contagio, evitando que toda a população fique doente ao mesmo tempo, e que não seja atendido por falta de leitos em UTIs e respiradores, já que o vírus atinge, principalmente, o sistema respiratório.



    E de Março pra cá, o que acompanhamos são improvisos pra justificar o pagamento dos salários dos profissionais de educação e para tentar dar uma resposta à população, e tudo isso, sem nenhum norte do Ministério da Educação, que segue a linha do presidente que que é a favor da reabertura das escolas..

    Desde Abril, quando retornamos ao que está sendo chamado de "teletrabalho"  nos deparamos com um abismo de desigualdades econômicas e sociais. Continuamos no "cada um por si" , e cada escola começa a se organizar de acordo com sua realidade, professores começam a agir por contra própria, todos na tentativa de encontrar meios de acessar estudantes e famílias durante a pandemia.

    Como professora de educação digital há mais de 10 anos, acompanhei a evolução do currículo nessa área. Com passos lentos e ainda poucos recursos, tivemos avanços, porém, nossa experiência na sala de aula, com computadores fixos, internet via cabo, onde o celular era permitido apenas em projetos, se choca com as urgências desse momento histórico, que vão desde o relato de famílias que têm apenas um celular pras suas quatro crianças, passando pela total ausência de acesso à  internet, chegando nas questões de sobrevivência imediata, que vão muito além de aulas pela internet.

    Imagine o tamanho da minha frustração, sendo professora de educação digital e não conseguindo dar a assistência necessária aos estudantes. "Ah, mas por que eles não aprenderam a lidar com essas questões tecnológicas?" Simplesmente, porque elas não estavam postas.



    A idade mínima para criação de e-mails  em geral é de 13 anos, e o cadastro quase sempre está vinculado a um número de celular, ou outro e-mail, o que não têm, e isso sempre dificultou o trabalho na escola. Assim, muitas habilidades que eles poderiam utilizar nesse momento, não foram desenvolvidas por falta de condições objetivas, as mesmas condições que tem impedido que eles possam ter acesso a um conteúdo mínimo durante esse período de suspensão das aulas.

    Hoje completam 60 dias da suspensão das aulas. Continuamos tentando acessar o maior número de estudantes, e tentando minimizar as dificuldades, seja fazendo tutoriais, seja dando assistência por redes sociais, seja criando blogs, ou outros espaços online, sem nenhuma garantia de que todos terão acesso.

    Aproveito pra levantar a reflexão que o que estamos vivenciando na educação básica da escola pública, não se trata de EAD ou homeschooling. O que estamos tentando fazer é proporcionar aulas não presenciais, onde o estudante vai acessar quando e da forma que conseguir. 

    O que muito se tem trazido para as reuniões online é a construção de um plano para a retomada do ano letivo, quando as aulas retornarem presencialmente. Mas quando será isso ninguém sabe. Os países europeus e mesmo a China têm tido cautela na retomada das aulas, com medo de novos contágios



    Além da iminente preocupação com o vírus desconhecido e sem cura, outra angústia que me toma nesse momento, e sem dúvida, toma muitos profissionais da educação, são os desafios que estamos enfrentando, e mais ainda os que nos aguardam, pedagogicamente falando. Me adianto em afirmar, que nenhuma experiência com reposições de greves dará conta desse momento histórico, porque não se trata apenas de lidar com a suspensão das aulas, e com os prejuízos no ensino e na aprendizagem, mas de lidar, sobretudo, com uma crise sanitária mundial, uma crise no debate científico, uma crise de saúde pública, conjuntamente com uma crise econômica, humana, social, sem contar essa suja e interminável crise política, que não nos permite focar apenas na urgência de conter o vírus.

    O fato é que, o fechamento das escolas no mundo inteiro, colocou em evidência o quanto as escolas, tal como conhecemos, com aulas presenciais e troca entre estudantes e professores, continuam sendo essenciais e insubstituíveis e, assim serão por muito tempo ainda.

Referências na ordem dos links no texto: